Sem Razão ou motivo.


Terminamos de fazer o que fazemos de melhor. Estamos nus...

Nós realmente somos os melhores em magoar as pessoas.
Terminamos... há alguns anos que terminamos, é verdade, mas continuamos nos convidando para um café na casa um do outro há anos.
Velhos hábitos nunca mudam. Nunca perdemos a chance de conferir se o outro está feliz, e se estiver, estragamos isso um no outro só com um olhar e um "Oi, queria te ver... (silencio de ambos os lados do telefone) ... pra tomar um café talvez." Nós dois sabemos que ela não toma café.
Acendo um cigarro, me enrolo numa manta qualquer que achei no sofá. Me sento próximo à janela. Estamos no quarto ou quinto andar. Eu nunca lembro.
- "Estou com fome." - ela diz, enquanto se espreguiça feito uma onça sobre a cama. - "Faz alguma coisa pra comer?!"
Vir aqui pra cozinhar, se tornou um ritual. Ainda acho que ela me chama aqui toda vez que a empregada tira folga. Mas tudo bem, duvido a empregada preparar comida nua e no escuro.
Olho pelos armários, procurando algo comestível. Apago o cigarro na pia... ela ouve um "tssss" e eu ouço um - "U-HUUUMMM!!! Na pia não caralho..." - eu mandaria ela à merda, mas ela usou a voz sexy, então acho que vou deixar passar essa.

- "Só encontrei arroz e um macarrão estranho aqui" - digo em voz baixa.
- "Serve! Pode ser isso mesmo." - ela retruca.

O bom de alugar um galpão pra morar, é sentir a liberdade de se viver sem paredes. Os cômodos aqui, ela dividiu com tapetes, ou seja, uma divisão visual, que no escuro, não serve para nada. Da pra escutar a respiração dela daqui.
Eu particularmente acho, tapete e cortina, coisa de mulher. Ela me chama de machista por isso até hoje, mas eu nunca vi um homem hetero sexual entrar numa loja e pedir pra olhar cortinas. Ou tapetes que não sejam pro carro.
Acho que o único lugar com paredes aqui é o banheiro. Que bom pras visitas...
Não é o meu caso, não sou visita, uso o banheiro de porta aberta, mesmo sendo um estranho, que passa aqui a cada 2 ou 3 meses pra ser abusado sexual e moralmente por uma felina que adora brincar com a refeição. Eu gosto disso, só pode... porque diabos eu sempre volto aqui?! Sempre me faço essa pergunta quando vou embora magoado... e sempre volto.
Não foi ela que me apelidou de Rato, mas achei conveniente apelidar a moça, de onça. Faz sentido pra mim.
Em meio aos chiados do alho e a cebola dançando sobre o óleo quente, preparando se para receber o arroz, ouço um roncar de estomago e um suspiro quase apaixonado.
- "Cheiro bom esse." - Ela diz.
Eu respondo com um simples "hum". Estou concentrado. Ela fica em silencio por mais um tempo.
- "Tudo pronto. Acabei fazendo o macarrão também." -- Pra disfarçar que eu esqueci de botar sal no arroz. Não que eu não queira dizer isso à ela, mas, odeio admitir que o olhar brilhante dela pelas costas tira minha concentração.
- "Ta bom! Traz pra mim?" - folgada... nem levantou. Ainda ta lá, deitada de bruços, me olhando como se eu fosse a refeição principal.
Eu levo a refeição da madame, como um verdadeiro serviçal, sem reclamar, alias, sem abrir a boca pra nada. Nem mesmo provei a comida. Ela acha que é porque eu sou bom e não preciso provar, mas na real, só como na casa dela se eu ver ela comendo e saindo viva. Ela adora a minha comida. Pelo menos é o que ela diz.
Me sento na janela e acendo outro cigarro. De um lado, assisto ela comendo e me olhando. Tentando ser sexy talvez. Se for isso, ta funcionando. Do outro lado o vidro embaçado. La fora chove, desde ontem que essa chuva não passa. Mas não vou comentar sobre isso, além de ser conversa de elevador, pode parecer que eu estou puxando assunto. Não quero que ela tenha uma ideia acertada a respeito do que eu quero ou deixo de querer.
- "Você fala muito palavrão." - ela diz do nada - "mas a comida está ótima." - como se houvesse conexão entre as duas frases.
Eu?! Esbocei um leve sorriso de aprovação que durou menos de um segundo. Foi só até eu lembrar que ela mente muito bem, e que eu esqueci de colocar sal no arroz.
Olho pela janela fixamente. Tento ignorar os olhos dela fixos em mim. Ato quase inútil, quanto mais tento disfarçar, mais ela percebe o quanto está me incomodando.
- Porque diabos eu venho aqui mesmo?! - Penso.
São quase Três horas da manhã, uma luz se acende no apartamento em frente. Eu automaticamente, viro o rosto.
- "A vizinha gostosa chegou" - ouço - "ela deve ser puta, sei lá, sempre chega essa hora, todo dia".
Me passa pela mente, dizer "Zé-povinho do caralho você hein?!", mas, fui eu que virei o rosto na direção da luz para olhar a janela alheia primeiro. Respiro fundo e engulo mais essa. Ela sorri.
Já de pé, ela vem na minha direção, andando como num desfile de modas, um pé na frente do outro, quase um animal espreitando a caça. A pele dela brilha na luz fraca que vem de fora, parece pelo bem lisinho... de onça, claro. Ela senta no meu colo, quase se aconchegando no meu peito, usa meus braços pra se abraçar, fuma o resto do meu cigarro e diz "Fica olhando, daqui a pouco ela aparece". Minha cara de interesse não é diferente de quando eu olho uma pilha usada na sarjeta, mas ela continua, "ela é linda, sabia? Pelo menos eu acho". Não retruco, mas tenho quase certeza de que não perguntei.
De repente, surge, enxugando os longos cabelos pretos, a própria Vênus com os seios à mostra... na Janela... olhando pra gente... surreal demais pra ser verdade. Ela sabe que está sendo vista, e sorri. Joga os cabelos pra frente, coloca a toalha atrás da cabeça e enrola. Tudo que eu vejo são peitos, quando de repente, aparece um distintivo. É dourado, numa carteira de couro preta. Ela segura ele na janela, um tanto distante do vidro, ciente de que se colar no vidro, a única luz que é do seu apartamento não vai iluminar o mesmo, suficientemente para ser visto.
- "Fudeu! Ela é da policia." - ela diz, assustada. - "e eu pensava que..." - parou ai.
- Humm! Algemas... - Eu penso em voz alta. Quase sem querer.
Quando a policial fecha a janela quase morrendo de tanto rir, eu percebo que estou sorrindo também.
Ela?! Emburrada. Creio que esteja tentando parecer enciumada. Eu não acredito nela, nem se ela disser que está... nem que seja em prantos... eu não ia acreditar.
Ela se levanta e vai em direção à cozinha. Pelo menos ela chama aquilo de cozinha, pra mim, é tudo quarto. Essa porra de apartamento nem tem paredes.
Larga o prato de plástico sobre a pia, se esguia pelas sombras, acariciando as cortinas e novamente se deita. Pelo menos não está mais olhando pra mim.
Tenho um Dejavu, já vi essa cena antes. Só não me esforço pra saber quando. Na verdade não quero lembrar.
Ela olha fixamente para o teto agora, acaricia os lençóis azul marinho que eu dei de presente quando ela se mudou da ultima vez.
- "Você me faz sentir sozinha" - disse a onça, batendo com a mão onde, em outra vida, foi o meu lado da cama.
"Péssima escolha de palavras" - penso. Mas, me lembro logo que ela não diz o que pensa e não pensa no que faz enquanto diz. Palavras desconectas de palavras e, claro, dos atos. Porque haveria de ser diferente?
Não pensem mal dela, ela é, de fato, uma das pessoas mais brilhantes que eu conheço. Como todos os loucos, nós nos entendemos. Eu pelo menos entendo quando não há palavras, mas não acredito num "A" que saia daquela boca.
Vendo que eu demoro pra reagir, ela me olha, me chamando. Sem palavras dessa vez, só aquela carinha triste que me faz voltar nessa merda de apartamento sem paredes, toda vez.
Levanto e vou em sua direção. Me deito ao seu lado. Ela escora a cabeça no meu peito e diz que está cansada da vida, que o preço do petróleo ta alto e que acabaram as camisinhas. Solta um longo suspiro, como se tivesse voltando a respirar depois de um longo tempo e diz que me odeia, me beija e me deseja boa noite.
Meia hora de silencio e sua respiração é agora mais lenta, mais quente, mais... sei lá... por um instante esqueço que sou o rato, sendo abraçado por uma onça, me sinto quase confortável. Penso no quanto seria frustrante pra ela acordar e ver que eu fui embora. Penso que seria ainda mais, se ela acordasse abraçada comigo. Mas lembro que se eu ficar, vou ter que fazer o café.
Levanto, bem devagar, para não acorda-la. No relógio da parte que ela chama de sala, marca quatro e doze. "Meu ônibus já deve estar passando" - penso - "que saco, agora que eu esquentei os pés". Esfrego os olhos, pego minhas roupas, quase sem pressa, me visto de qualquer jeito, pego um papel na gaveta ao lado da cama e escrevo:
"Bom Dia!
Tive que sair mais cedo, espero que não se importe."
- como se ela se importasse -
"Qualquer coisa me liga, tá?
Se cuida."
Fico olhando ela dormir, mais um pouco. Ela parece até inofensiva assim. Ainda mais se estivesse amarrada, mas, não se pode ter tudo. Encaro o bilhete novamente. Acho que ta muito seco, grosseiro, sei lá... não, ta bom assim. Não quero que ela ache que sou legal ou que pode me amar. - como se ela amasse alguém além de si mesma - Paro de pensar. - é ai onde eu normalmente erro. Me debruço sobre a cama, e beijo seus lábios como num adeus de verdade. Tomara que dessa vez, seja mesmo.
Ela sorri, ainda dormindo... "Também te amo" - sussurra.
Droga, mas eu não disse nada. Droga...

Suspiro...

Enfim, saio. Amanhecendo o dia já...
Em direção ao ponto, acendo outro cigarro, vários carros passam por mim, apressados, seus donos querem chegar logo ao seu destino, uns para dormir logo, outros para trabalhar, e eu, para me livrar.
Porque diabos eu sempre volto aqui mesmo?! - Penso... - Maldito bilhete, não era pra escrever nada sobre ela me ligar.
Dou sinal para o ônibus parar.  Entro, passo a catraca e não olho para trás... pela milésima vez.








--// Sem música dessa vez /--

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